Notícias
Ensino na Região de Fronteira
Com a maior população indígena do Brasil - cerca de 34 mil dos seus 39 mil habitantes --, São Gabriel da Cachoeira (AM) enfrenta desafios para garantir a educação de suas crianças. Apesar da grande valorização que as comunidades indígenas dão à educação, as unidades de ensino ainda são muito precárias em sua infraestrutura, conta Elias Brasilino de Souza, diretor do Instituto Federal do Amazonas (Ifam), no campus do município. A 852 quilômetros de Manaus, São Gabriel da Cachoeira possui uma das maiores extensões territoriais do país, 109.185 km², 71 vezes maior do que a capital paulista, e ocupa praticamente toda a região conhecida como "Cabeça do Cachorro", no Alto do Rio Negro, na fronteira com Venezuela e Colômbia.
Segundo Souza, também falta maior adaptação das aulas e do currículo para tratar da cultura indígena e melhores cursos para os professores sobre como abordar essa questão. Paraibano de origem, ele atua desde 1998 como educador no Amazonas, graduou-se em filosofia e é especialista em gestão e manejo ambiental, com mestrado em sociedade e cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas.
Além de estar à frente da gestão do Ifam, o professor coordena o Fórum Interinstitucional de Políticas Públicas, criado em 2011, que tem ligação direta com a Secretaria Geral da Presidência da República. Em 2013, o educador lançou o livro Cidadania Indígena, Políticas Públicas e Desafios da Sustentabilidade no Alto Rio Negro, que analisa o poder e gestão pública da região. Com amplo conhecimento sobre a gestão do ensino público no estado, Souza falou sobre os desafios do ensino em entrevista concedida às jornalistas que participaram do Projeto Repórter do Futuro em viagem ao Amazonas.
Quais são os principais desafios do ensino na região?
SOUZA: Aqui, as comunidades valorizam a educação. Para eles a escola é importante, tenho vivenciado isso de forma intensa. Um aluno do curso percorre uma longa distância de rabeta [espécie de embarcação] e passa cinco dias para ir à uma reunião sobre educação. Os índios aqui valorizam a educação, coisa que na cidade não se vê hoje. As comunidades indígenas pensam uma educação que os ajudem a resolver as situações concretas do seu cotidiano. Eles rejeitam uma Educação formal, só de quadro, de coisas só para se estar na cabeça, mas que não conseguem resolver uma situação prática. Então isso é uma coisa muito interessante. Por outro lado, você tem um estado ainda extremamente autoritário, cujos operadores são incapazes de dialogar, ouvir as demandas das populações indígenas e dar resposta a elas. Esse é o grande embate: você tem uma tensão entre a comunidade que valoriza a educação e um estado autoritário, conservador, que silencia as vozes da população. O estado mantém ainda uma postura de oferecer apenas uma forma de educação tutelada aos índios; em que ele é o mantenedor e o instrutor, definindo as aulas do jeito que ele quer, e não do jeito que a comunidade precisa.
Como é a administração da educação pública?
A educação aqui tem dois vieses. Uma que é no sentido originário da região, da educação indígena, que engloba a forma como as famílias, tradicionalmente, nas comunidades transmitem os conhecimentos e saberes de sua cultura. Há também a educação que gradativamente foi se estabelecendo através do espaço formal do estado brasileiro num processo que, dependendo de quem fala, é chamado de processo civilizatório e outros chamam de processo colonizador ou invasor. Os saberes tradicionais ainda continuam sendo transmitidos e valorizados no âmbito das comunidades indígenas - nas castas, nas etnias, nos grupos - das várias etnias do Triângulo Tucano.
O estado está presente em toda essa região? Há escolas?
Na fronteira com a Venezuela e com a Colômbia há a presença forte do Estado e em alguma dimensão do município. Nas calhas todas tem-se a presença da educação do estado, seja na área do rio Içana, na área do rio Aiari, há uma presença forte de escolas indígenas vinculadas ao município. Na área do rio Vaupés tem-se uma consolidação maior do nível médio. Nas escolas dos Pelotões de Fronteiras Pari Cachoeira, Iauaretê, Quiarari, São Joaquim, Tunui e Maturacá. Na área dos Dow há uma escola municipal. De maneira geral, o estado tem marcado presença, mas é uma atuação muito precária por conta das condições de infraestrutura, de salas, de escola, carteiras. Tanto por parte do estado na esfera municipal, quanto o estado na unidade federativa do Amazonas. A educação indígena ainda continua acontecendo no âmbito tradicional.
No Triângulo Tucano a mesma coisa?
É, o Triângulo Tucano, principalmente nas esferas distritais, é a área menos precária por conta da presença ainda - ou de marcas da presença - da ação missionária. A educação formal chegou nessa área pela via da ação missionária salesiana a partir de 1914. Neste ano, os salesianos foram convidados pelo Papa da época para assumir essa região porque ficou um vácuo com o fim da ação missionária dos jesuítas. Até então os evangélicos não tinham chegado por aqui. Eles vêm em 1916 e, no final da década de 20 e durante toda a década de 30, aliados a algumas tropas do Estado brasileiro e até militares, fazem um processo de reconhecimento das grandes calhas dos rios, principalmente a calha do rio Negro e começam a instalar as unidades missionárias. A primeira delas foi um dos eixos do Triângulo Tucano, que é Taraquá. Depois, criaram Barcelos, Santa Isabel, São Gabriel, Iauaretê, Pari Cachoeira, Içana. Plantaram algumas unidades na área de Maturacá e também na área de Cucui, na fronteira com a Venezuela e a Colômbia. No rio Xié, a calha desse rio é muito permeada pela ação da educação do estado, mas também com a presença da ação religiosa dos evangélicos. Por isso o Triângulo Tucano é mais politizado do que a própria sede do município.
Existem escolas que estão dentro de Pelotões de Fronteira. Essas escolas são voltadas para a educação apenas dos filhos dos militares ou outras pessoas da região também podem frequentá-las? Elas são administradas pelo Exército?
Outras pessoas podem, sim, frequentá-las. O Exército, na verdade, apoia. Até porque não são escolas federais. Unidade de educação federal só tem essa aqui (Ifam). Há uma presença esporádica de familiares através de cursos sazonais, de formação de professores, com o pessoal da Universidade Federal do Amazonas e da Universidade Estadual do Amazonas também.
Então a atuação do Exército não é tão forte, mesmo nas escolas dos Pelotões de Fronteira?
Não. O exército é forte enquanto presença, mas não detém a totalidade da hegemonia da gestão dessas escolas. Eles estão lá dando todo apoio na parte de logística, se tem alguma esposa de militar professora, elas dão aula e já até aconteceu de serem diretoras das escolas por aí...
O senhor falou de colonização. Como trabalham com os indígena essa questão? Quais são os anseios deles?
O modelo hegemônico ainda continua, predominantemente autoritário do ponto de vista curricular, da disciplinaridade, o estado ainda tem muita dificuldade em reconhecer um currículo alternativo, embora a lei aponte para isso. A colonização continua com a imposição de um modelo autoritário, corrupto, de um modelo de desenvolvimento econômico que nada desenvolve, ao contrário, tende a viciar os indígenas, que ficam sem exercer a sua autonomia, sua autodeterminação de criar e produzir ao seu modo. Do ponto de vista político é um desastre.
Existe alguma política estadual voltada ao ensino dos idiomas locais, além do português?
Não, aliás, tentou-se dar um passo com o envolvimento e participação da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) tem um departamento de educação indígena. Temos uma interação muito boa com eles e esse pessoal participou de um processo que resultou numa lei municipal, em 2002, que instituiu no âmbito do município três línguas oficiais - o tucano, o banuia e o ingatu.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) prevê a inclusão da cultura local no currículo. Os professores daqui conseguem fazer isso? E como se dá a valorização desses conteúdos na formação dos professores locais?
Em dezembro de 2008, uma decisão de uma convenção interétnica -- uma grande assembleia dos professores de educação indígena na Amazônia, um bloco da Federação das Comunidades Indígenas -- definiu que nós deveríamos começar a implantar na região um modelo chamado licenciatura intercultural indígena para preencher uma grande lacuna na formação de professores habilitados. Nesse modelo, conforme se discutiu, teria de se incluir os próprios destinatários dos cursos. O Projeto Pedagógico tinha que ser um produto que incluísse fundamentalmente os agentes indígenas como participantes. A Universidade Federal do Amazonas teve algumas dificuldades, mas implementou um modelo mais focado na sustentabilidade e um mais genérico, que sai bastante do padrão convencional. O problema é o fechamento desse modelo para ajustes e para a contextualização dele na região. A universidade ainda é extremamente reacionária em relação a isso, o Estado e o município pior ainda. Nós fizemos uma proposta em Brasília, que foi encaminhada ao Conselho Nacional de Educação, de licenciatura intercutural em um curso na área de física.
O material didático considera as questões culturais e sociais dos indígenas?
Esse material é comprado para o Brasil todo, ou seja é igual para todos e não se considera as particularidades. Não descartamos esse material no seu todo, aproveitamos aquilo que é aplicável aqui. Nós professores temos que correr atrás, eles mesmos elaboram materiais e apostilas, textos, trabalho de campo, visita etc. Embora eu entenda que temos que ir além disso.
Há dificuldades logística para que os materiais didáticos cheguem às escolas?
Aqui a logística é difícil, tanto fluvial quanto aérea. As instituições precisam, em uma área tão isolada e distante, se deslocar para fazer intervenções, disputar recursos. Isso atrapalha todo os serviços, Ministério Público, Poder Judiciário, Executivo, etc.
![]() |
Mapa da macrorregião onde está localizado o município de São Gabriel da Cachoeira |
* Fonte: Revista Escola Pública